Marcella Brito dos Santos*
Podemos pensar a maternidade sob a ótica da sociologia como um produto sociocultural de um determinado tempo e região que perpassa também questões de gênero. “Produto” este, que de acordo com o constructo político vigente, sofre interseccionalidades dos sistemas de poder que regem os discursos e privilegiam determinadas camadas. Para Foucault (2000), o discurso atua enquanto um conjunto de saberes e práticas “que formam sistematicamente os objetos de que falam”, demarcando o “lugar social” da mulher ao exercício da maternagem e a prática do “amor incondicional e altruísta” como algo inerente a sua “natureza”. Podemos observar essa proposição nas políticas públicas sociais, em especial no Brasil, que condicionam a mulher/mãe a reponsabilidade nos cuidados da prole em detrimento de uma culpabilidade caso essa tarefa não seja cumprida de maneira “adequada”. O que implica na constituição simbólica desse significante. O objetivo principal desse texto é discorrer acerca do constructo sociocultural da maternidade e a subjetividade materna sob a perspectiva psicanalítica a fim de proporcionar uma reflexão sobre o tema. Subjetividade, em linhas gerais, pode ser dito como o modo particular de ver, perceber e sentir os objetos, formando o escopo de nossa unicidade, que é transpassada pela linguagem. Para a psicanálise, a figura materna [não necessariamente a genitora] possui uma função essencial à constituição psíquica do ser, uma vez que atua como aporte emocional entre o lactente e o externo, ou seja, nosso primeiro laço social instituído. Winnicott fala sobre um estado psicológico peculiar [preocupação primária] àquela que gesta, cujo bebê se torna a figura central de suas expectativas, esse estado tende a ser reprimido no pós-parto [simbólico ou não]; para Lacan, esse processo de individuação se dá na fase do estádio do espelho; nele, a criança se percebe como um “outro” à mãe. Nesse contexto, é fundamental pensar e criar dispositivos de resgate da subjetividade materna como um SER composto por necessidades e desejo, sendo este o estímulo que nos move em busca “daquilo que nos falta” segundo a teoria psicanalítica.
Palavras-chave: Maternidade, Lugar social, Subjetividade, Psicanálise.
Até por volta do séc. XV - XVI a obrigatoriedade do exercício da maternidade e suas funções sociais não eram atribuídas a todas as mulheres, alguns bebês eram encaminhados às amas-de-leite para que os cuidasse até certa idade. Deste modo, podemos pensar sociologicamente o ideal da maternagem como algo incumbente à mulher menos abastada, fora do circuito socioeconômico hegemônico das elites daquele tempo.
Nessa linha, podemos perceber então, a maternidade como “resultado de um processo de re/significação cultural que não pode ser entendido fora das relações de poder que a constituíram/constituem “(Klein, 2005) premissa esta que se repete na atualidade, nas políticas públicas, em especial às de benefícios sociais “cujo público alvo são mulheres-mães pobres” (Klein, 2005).
Somente na era pós-moderna, com a constituição da família nuclear e valoração do infantil é que emerge a função de “mãe cuidadora” (Brito, 2020) atrelado à figura da “boa mãe”; o que inscreve também uma questão de gênero nesse constructo simbólico que liga o significante a responsabilização do cuidado com as crianças no que tange à educação, saúde, alimentação, etc.
Nesse sentido podemos evidenciar uma diferenciação entre os sexos e consequentemente, os gêneros; e seus impactos na composição sociocultural e parentalidades, pois “não podemos compreender a maternidade sem abordar a paternidade, a mãe sem o pai, no sentido biológico e social do termo” (Scavone, 2001) e essas questões intersubjetivas interessam a agenda da psicanálise, que precisa pensar e acolher na clínica as diferentes óticas e as implicações imbuídas nos constructos sociais da maternidade (Brito, 2020).
Num primeiro momento, abordarei a questão da maternidade sob esta interface, uma vez que esse estado se dá ainda na gestação, cujo arcabouço simbólico perpassa a maternidade – como marcador de lugar - e o bebê. Winnicott cita que a mulher entra num estado psicológico peculiar [preocupação primária], marcado pela ansiedade e sensibilidade afloradas em relação à maternagem, a [não] realização do desejo e as necessidades do bebê, imergindo-a numa condição de“ sentir o que ele [o bebê] sente e precisa” (Esteves et al, 2011) em detrimento dos reais anseios do EU.
Dentro dessa visão, a mãe e seu bebê possuem uma relação recíproca e complementar, podendo-se pensar que a mãe não existe sem o bebê e o bebê não existe sem a mãe (Winnicott, 2000 [1956]). A gravidez (biológica ou simbólica) requer uma mudança profunda na psique e nos laços, para cada sujeito esse acontecimento será vivido de forma diferente, de acordo com sua própria história quanto bebê. Dessa forma, a gravidez sempre remete a uma atualização das experiências infantis dos pais (Ferrari et al, 2007). O que de certa forma, a coloca em segundo plano no que tange à sua subjetividade quanto um SER que também deseja; bem como sua “relação singular-particular-universal” (AN et al, 2011) ante sua história pregressa à maternidade. Essa concepção de “unidade” perdura por alguns meses e, em alguns casos, os primeiros anos da criança se dissolvendo à medida que essa mãe consegue ajudar o filho em seu desenvolvimento emocional e autonomia funcional.
Segundo Lacan, esse processo de individuação - primeiro drama da existência - tem como marco a fase do estádio do espelho, entre a idade de 16 e 18 meses após o nascimento - onde se dá a constituição do “eu” (Fages, 1977) quanto um “outro”. Logo, compreender a história, os mecanismos mentais e a interação psicossocial do EU quanto mulher em sua unicidade dentro dos laços sociais, pode instrumentalizar a ressignificação desse vínculo afetivo instituído de maneira que esse sujeito-mulher-mãe possa ser [re]inserido na sociedade, inclusive acadêmica, como um SER além da função materna.
A psicanálise pode auxiliar a pensar o processo de subjetivação desse sujeito entendido como aquele que funda, instaura e dá sentido ao real; para Freud, “O Eu domina tanto o acesso à consciência como a passagem à ação no mundo exterior” (Freud, 1926-29 [2014]) o que [re]coloca a subjetividade na posição dominante de discurso - ligado aos interesses do sujeito - mitigando a posição do “tudo-saber” daquele que domina no discurso capitalista (Lacan, 1969-70[1992]) vigente.
A sociedade viriarcal regida pelo capitalismo e seu discurso – cujos “interesses são [...] inteiramente mercantis” (Lacan,1969-70[1992]), desvalorizam a condição materna e repudiam os laços sociais; ao passo que imputam ao homem/masculino (outrora detentor do falo [poder de castração]), a produção “do [quase] saber” assegurando lhe o direito ao [semi] gozo (no sentido de mais-além do prazer). Nessa configuração discursiva, ele “sustenta o saber” embora não o tenha por completo. Os laços inexistem, bem como a estima ao subjetivo.
Cabe à psicanálise desmantelar esse regimento capitalista [inclusive no meio acadêmico] uma vez que o discurso do analista é seu avesso [segundo Lacan]. Isso pode se dar através de dispositivos de acolhimento e promoção de espaços de fala dessa mãe que tem algo a ser dito. A posição do analista como agente do suposto-saber, tem o dever de repudiar a dominação discursiva em favor das pluralidades e novas formas de estabelecimento das relações objetais do ser, sejam elas: acadêmicas, amorosas, sexuais e/ou de maternagem.
REFERÊNCIAS:
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BRITO, Marcella. Em nome da mãe: Um olhar psicanalítico sobre a [não] maternagem e seu papel na construção psíquica do sujeito. Blog psique & análise Publicado em 29 de maio de 2021. Disponível em : https://psique-analise.blogspot.com/2021/05/mecanismos-de-defesado-eu-em-tempos-de.html Acesso em: 10 de abril de 2022.
ESTEVES, C.M. et al. Indicadores da preocupação materna primária na gestação de mães que tiveram parto pré-termo. Psicol. clin., Rio de Janeiro , v. 23, n. 2, p. 75-99, 2011 . Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 56652011000200006&lng=pt&nrm=iso Acesso em 15 de outubro de 2020.
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FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2000.
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WINNICOTT, D. W. A preocupação materna primária. In: __________. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (1956). Rio de Janeiro: Imago. 2000.
SOBRE A AUTORA:
Marcella Brito dos Santos é psicanalista, professora e pesquisadora. Pós-graduada em teoria psicanalítica na Faculdade Venda Nova do Imigrante. Capacitação em Primeiros Socorros Psicológicos, Prevenção ao suicídio, Saúde Mental e Atenção psicossocial no contexto da Covid19, Psicanálise da violência doméstica, Prevenção a automutilação, Abuso e exploração sexual infantil. Atua como voluntária no Grupo de apoio a adoção Cláudia Diniz. Mãe do Fernando, Miguel e Isabella.
E-mail: marcellabrito.psic@gmail.com