IDENTIDADE FEMININA: QUAL A PROFISSÃO DE MAINHA?
Por: Carla Santos Santiago - citra108dasi@gmail.com
Estou ainda um pouco atônita enquanto faço este texto. A questão é exatamente essa do título: qual a profissão de mainha? Eu não tenho a resposta para esta pergunta e este fato tem tudo a ver com a construção social da identidade feminina na base opressora e
machista que vivemos.
Hoje lia “A Mística Feminina” de Betty Friedan, um livro de 1963 baseado em um estudo
marcante sobre a cultura americana da mulher/esposa/dona-de-casa que se tornou um
fenômeno particularmente dominante na época, fazendo uma geração de meninas
abandonarem estudos, carreiras e sonhos pessoais para viver a família perfeita, o sonho
americano da mulher dedicada ao lar e a família. Ao apresentar o fator econômico
determinante para este cenário, a autora aponta como a indústria se especializou em
produtos domésticos em vista de atrair esse público. Em um trecho, ela aponta:
“Quando ela usa um produto para lavar roupas, outro para lavar pratos, um terceiro para as paredes, um quarto para os pisos, um quinto para as venezianas, etc…, em vez de um
mesmo limpador geral, ela se sente menos como trabalhadora não qualificada e mais como engenheira, especialista.”(p. 187)
Ao ver essa palavra “especialista” automaticamente pensei em mainha, como ela fazia
questão de mostrar, ao longo da vida, como sabia tirar um encardido de um pano de prato, como sua comida era bem feita (e limpa!), como sua casa dava trabalho porque ela
detestava bagunça! Mas rapidamente minha mente me deixou em um conflito: “Pera,
mainha não era uma ‘mera dona de casa’. Ela trabalhava desde nova, sempre sustentou eu
e meus irmãos com seu dinheiro e casa e família era um aspecto da sua vida, não o todo!
Mas, no que mainha trabalhava? Quais são as qualidades dela como profissional?”
E aí, minha gente, minha memória voou longe num quebra-cabeça de lembranças sobre
mainha e seu trabalho. Ela trabalhava como funcionária pública federal na área
administrativa de postos de saúde do governo. Eram 6h de trabalho e só. É tudo que
consigo lembrar. Eu a visitava no trabalho e basicamente - todas as vezes - ela fazia um
tour pelo espaço, me apresentava - re-apresentava - para amigas e colegas como um trófeu de filha que estava crescendo linda e saudável. Ela preenchia fichas, carimbava papéis e comia biscoitos com café. Mas o que era aquilo? Eu não tenho ideia.
Enfim, eu descobri que não fazia parte da conversa dela comigo e meus irmãos falar de seu trabalho, de suas habilidades profissionais ou até de uma construção de carreira. Talvez ela sentisse que aquele trabalho era o que permitia aquela mulher sustentar uma casa e três filhos que nunca receberam uma pensão do pai - homem que abandonou o lar quando éramos crianças.
Por outro lado, a conversa sobre a casa, a limpeza, a organização e sua especialidade em
manter tudo em ordem eram sua vida e alma para falar com a gente, com amigos, familiares e conhecidos. Além disso, seus sacrifícios e cansaço constantes para fazer seus filhos felizes e suportar as dores da maternidade eram sempre acrescentados com destaque ao pacote da conversa. Até hoje é nítido na minha mente o corpo dela cansado e acomodado em um sofá de dois lugares (que virou sua cama até os dias de hoje…).
Mas, por quê? Por que mainha escolheu esse lado da vida dela como sua parte mais
interessante? Como Friedan apontou há mais de 40 anos, é pela mística feminina, essa
aura engrandecedora que entregam às mulheres como seu valor de vida ser a mãe por
amor incondicional, a dona de casa empenhada, a ex-esposa que age como se ainda fosse
esposa de alguém que lhe vigia os passos para que seu lar seja exemplo ao mundo.
A profissão de mainha agora virou um vazio em mim, uma sensação de que eu absorvi a
invisibilidade de Eva, uma mulher que talvez tenho tido sonhos de carreira, de realização
profissional, de conexão a capacidades suas que poderiam deixar algo ao mundo que fosse além da criação de filhos e a herança de um casa com pratos limpos e panelas areadas.
FONTE: FRIEDAN, Betty. Mística feminina – Tradução de Áurea B. Weissemberg. Rio de
Janeiro: Vozes, 1971.