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"não tenho com quem deixar": maternidade e mobilidade urbana no rio de janeiro

Por: Yasmin Rodrigues - yasmin.rodrigues@gmail.com

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“Não tenho com quem deixar”: essa é a frase mais falada por mães de bebês e crianças para justificarem a impossibilidade de irem para qualquer lugar. Os mais velhos já não estão disponíveis para serem cuidadores das crianças e talvez esse seja um efeito imediato da dificuldade de alcançar a aposentadoria depois da reforma da previdência. Os papéis se inverteram: nas praças das favelas e dos bairros pobres, não raro, uma criança cuida da outra. Quando há adultos disponíveis para o cuidado das crianças, essa atividade tem custado caro: sem apoio, fonte de renda, estigmatizadas e excluídas da sociabilidade urbana, as mulheres mães são encarregadas da gestão das infâncias. A conta não fecha. Financeiramente dependentes dos maridos, elas vivem relações violentas e não conseguem denunciar. Quando mortas, deixam órfãos essas crianças que também não terão suporte estatal para o luto. A maternidade é uma pena equilibrando-se em uma corda no alto de um precipício no mundo real da pobreza carioca: vulnerabiliza as mulheres financeiramente, já que as retira do mercado; fisicamente, já que o trabalho materno acumula-se ao cuidado com a casa e os demais integrantes da família; emocionalmente, já que lidar com uma criança em fase de desenvolvimento requer a gestão de muitas crises típicas da infância. O que sobra?

 

Sem espaço para a subjetividade, sem aparelhos culturais nos bairros, sem praças habitáveis para seus pequenos se integrarem com outras crianças, a essas mulheres sobra um coque no cabelo, uma olheira profunda e um sentimento ambíguo e controverso: amam seus filhos, mas vivem frustradas. Na minha experiência, de mãe solo, moradora de uma favela da Zona Oeste da cidade, percebo que há, ainda, uma camada sensível sobre a maternidade - somos mais vulneráveis à violência masculina e ao desrespeito da comunidade. Sempre dou um exemplo: imagine-se, mulher, em uma rua escura às onze da noite. Agora, imagine-se no mesmo local com uma criança no colo. Assédios sexuais, reivindicações por direitos ou mesmo conflitos de vizinhança passam a ter um tom mais ameaçador para quem precisa garantir a segurança de uma criança indefesa. Por aqui, eu ainda não encontrei a imagem da mãe santificada. Experimente amamentar um bebê na rua e perceba toda violência que o misto de misoginia e pedofilia podem proporcionar. Os homens são majoritariamente destituídos de qualquer noção de cuidado, proteção ou apoio a mulheres e crianças.

 

Levar a criança é uma opção? Quais são os espaços de trabalho que garantem essa possibilidade? Quais são os espaços culturais que recebem crianças? Localizados a pelo menos três horas de distância da Zona Oeste, eles estão no Centro e na Zona Sul. Passear? Onde há fraldários? Onde há sorrisos para as crianças e suas mães? A hostilidade é, ainda, um obstáculo, mesmo nos locais que já estão fisicamente estruturados para receberem os pequenos, seja com banheiros familiares, seja com cadeiras de alimentação. E aí, já é querer demais receber acolhimento, não é? Para estar no espaço público com uma criança, as mulheres são sobrecarregadas com a função de conterem a natureza infantil de seus filhos. Não raro, batem, gritam, ofendem, no intuito de serem aceitas e bem quistas. Não há qualquer possibilidade de garantir uma educação respeitosa se não há respeito com quem está educando. A hostilidade vira o padrão. Construir frestas de delicadeza é outra sobrecarga para nós, que somos cotidianamente brutalizadas. Estou falando de mulheres sozinhas. Que lidam, ainda, com os efeitos dessa solidão que a exclusão social causa.

 

Mais de 17 mil crianças aguardam por uma vaga nas creches da Zona Oeste do Rio de Janeiro. O número corresponde a quase metade das inscrições, que totalizaram 35.735 de tentativas de matrícula. O processo ocorre assim: o responsável pela criança, quase sempre a mãe, deve selecionar 5 unidades de ensino por meio de um site da prefeitura. Na minha experiência, todas as creches selecionadas já estavam acompanhadas por um aviso de que o horário era reduzido, de 7h30 da manhã às 15h30. Isso significa que não havia oferta de ensino integral. Um dos critérios para prioridade das crianças é que os responsáveis estejam empregados. Quase um deboche com as mães que não conseguem voltar ao mercado de trabalho, justamente por conta da maternidade. A alternativa do ensino privado é inatingível para a maioria das famílias de baixa renda: creches particulares custam em torno de um salário mínimo. O que sobra são locais onde “toma-se conta de crianças”, algumas outras mulheres sobrecarregadas que cuidam de 10, às vezes, até mais, crianças de diversas idades em uma casa que comportaria, talvez, uma família com dois filhos. Não há qualquer beleza nisso.

 

Mais que uma rede de apoio institucional para as mães, a creche é um direito das crianças. Ao garantirem a socialização dos pequenos, habilidade imprescindível de ser adquirida na primeira infância, permitem o contato com a diversidade por meio da condução de profissionais especializados. As creches são também meios de promoção da segurança alimentar, dos vínculos de territorialidade, de cultura, lazer e têm o papel de envolver toda a família. Além disso, e esse é o ponto principal da minha abordagem, a creche garante que as crianças circulem pelo bairro - no caminho para ida e volta - e que suas mães também façam percursos mais longos.

 

Além de escolas e creches, precisamos urgentemente falar em acessibilidade para mães e crianças nas periferias da cidade. Isso porque nossa presença nos espaços e nossa circulação pela cidade depende de mecanismos físicos e culturais de inserção. É impossível que só caibamos entre as divisórias dos cômodos de uma casa, que só possamos passear na praça do bairro, quase sempre abandonada ou que tenhamos que ficar limitadas a experiência virtual para sermos alguém (você já notou como mães produzem conteúdo nas redes? às vezes, essa é a única forma de existir e ter alguma renda). Tudo muito precário. A sociedade perde sem o convívio com os pequenos. As mulheres perdem sem o convívio com a sociedade. A relação entre as mães e as crianças perde com a sobrecarga. Afinal, quem está ganhando com nossa imobilidade urbana?

SOBRE A AUTORA

Yasmin Rodrigues - Cientista social (IFCS/UFRJ), mestra em Direito (PPGD/UFRJ), especialista em Antropologia Brasileira (UCAM). Pesquisadora nas áreas da Antropologia Jurídica, Segurança Pública e Direitos Humanos. Mãe da Lua, de 1 ano e 8 meses

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