Mãe-solo: Guerreira, uma ova!
Mãe solo de três garotos, mulher preta cis hétero, nascida e criada no Subúrbio Ferroviário de Salvador durante os meus primeiros 20 anos de existência. Pedagoga, Especialista em Transdisciplinaridade e Desenvolvimento, Pós-graduada em Questões de Gênero, Raça, Etnia e Sexualidades na Formação de Professores, Profissional de Educação na rede estadual de ensino da Bahia e no ensino superior privado, no
Recôncavo Baiano.
Sou feita de tudo que precisei superar!
Depois do nascimento do meu primeiro filho no ano de 2001 entendi, literalmente, que coragem é ir com medo mesmo quando se trata dos desafios cotidianos da maternidade. Imersa numa sociedade que enxerga as mães apenas no mês de maio e a mulher preta apenas no mês de novembro, eu ouso escrever sobre maternidade-solo porque essa labuta é de todo dia, do ano inteiro, da vida como ela é.
Escrevo porque a maternidade me move, porque nego-me a habituar com o fato de que há um grupo imenso de pessoas que não concebem ver uma mãe envolvida em qualquer atividade, seja ou não de lazer, sem a companhia constante dos/as filhos/as. E se forem mães pretas, mais incomodadas ainda as pessoas demonstram ficar porque entendem que mulheres pretas têm sempre afazeres domésticos na sua casa ou na casa de alguém para cuidar. Reflexos de um racismo secular!
E a ausência da companhia dos/as filhos/as é um questionamento exclusivamente feito às MÃES! Sempre às mulheres.
Cabe salientar, então, que mães são mulheres cuja existência não se iniciou com a chegada de filhos/as. Tínhamos gostos, desejos, quereres, vontades, necessidades e interesses antes de nos tornarmos mães, e continuamos a tê-los depois da maternidade. É bem verdade que alguns interesses mudam ou perdem a importância, mas gostamos de fazer uma infinidade de coisas estando SOZINHAS, e isso não altera em nada as responsabilidades maternas.
Vejo, inclusive, mães que se culpam por desejarem tempo de privacidade. APENAS PAREM! Não é justo consigo mesma medir as próprias necessidades usando as réguas dos outros. Das coisas do cotidiano como tomar um banho demorado, escutar músicas no volume máximo, poder escolher não cozinhar ou não limpar a casa, não ter a obrigatoriedade de ensinar atividades escolares nem de cortar unhas alheias, desejar tocar meu corpo e fazê-lo, dançar aleatoriamente, dormir a tarde inteira, lavar os cabelos sem pressa, fazer vários nadas ou até mesmo querer adiantar coisas do trabalho, são algumas das coisas que curto muito fazer estando apenas na minha própria companhia. E isso não faz de mim mais ou menos mãe. Isso sou eu sendo apenas uma mulher, para além das atribuições da maternidade,
que sempre foi e é uma escolha e uma prioridade. Mas não abro mão do meu direito de ser, porque uma coisa não exclui a outra!
O corpo da gente fala, e o meu as vezes grita!
Diariamente, decido enfrentar a exaustão física e emocional e vou viver, mas por debaixo da máscara não-visível tem, muitas vezes, uma mulher sobrecarregada. Isso não é singularidade minha. A maternidade, de fato, esgota forças e paciência. Se aqui couber um bom conselho, lá vai: Sempre que tiver a chance de ser gentil e acolhedor/a com alguém, seja!
Cabe esclarecer devidamente que mães-solo são diferentes de mães independentes que escolhem experimentar um processo de inseminação artificial, por exemplo. Não escolhi criar meus filhos sozinha quando constituí uma família. Não decidi que não preciso de apoio, presença paterna e/ou divisão justa de responsabilidades na criação dos meus meninos. A minha escolha foi ser mãe de três.
Me resta trabalhar muito para arcar, literalmente, com os frutos das sementes que planto e rego. É mesmo da minha conta!
Mas tem um exercício bom de empatia que acho bacana da gente fazer antes de virar uma mensagem, uma ligação ou uma visita desagradável e indesejável na vida das pessoas. Erro pra caramba tentando acertar, mas me pergunto sempre:
Eu ia querer ter uma mãe como eu?
Eu ia querer ter uma Professora como eu?
Eu ia querer conviver com uma Coordenadora como eu?
Eu ia querer participar de uma formação com uma Assessora como eu?
Eu quero ter uma amiga como eu?
Já respondi “NÃO” para essas perguntas, algumas vezes. É para não fazer com os outros o que não quer para sua vida mesmo! Nós, mulheres, temos o péssimo hábito, condicionado pela cultura machista universal, de competir entre nós. E essa competitividade, quase que inata ao feminino, nos impulsiona a emitir ideias e compreensões sobre o comportamento umas das outras, validando-os como adequados ou não, a partir de uma ótica muito particular, com base nas próprias vivências, muitas vezes. Ou seja, um recorte bastante limitado da realidade tão diversa da coletividade.
Esses recortes respaldados nos próprios padrões que costumam categorizar “certo” e “errado”, desconhecem que convém não exigir de outras pessoas atitudes que não somos capazes de sustentar, no que se refere a maternidade, inclusive. Cabe refletir, por exemplo, que onde tem crianças bem cuidadas, bem alimentadas e seguras, se tem uma casa limpa, se tem trabalho bem feito, se tem boletos pagos, tem alguém muito cansada/o por trás disso. É fato!
“Mas isso é obrigação de mãe. E tem que fazer bem feito!” - Muitos/as dirão. Especialmente quem acredita na ideia de que o contrato da maternidade envolve uma cláusula incontestável de sacrifício diário, para que reforça a construção da maternidade como exercício de controle sobre as mulheres, para quem idealiza as mães como mulheres imaculadas, quase divinas, com dons naturais de abnegação e conhecimento sobre tudo e todas as coisas.
E tudo que essa idealização provoca é a frustração tanto de filhos e filhas que não têm essa tal “mãe impecável”, quanto de mulheres que não conseguem atingir esse ideal.
A psicanálise, na vertente Freud-Lacan, tem dois conceitos bons sobre ser a melhor versão de si mesmo: o ideal do eu, e o eu ideal. O eu ideal é essencialmente aquilo que desejamos que os outros reconheçam em nós ou aquilo que desejamos ser. O ideal do eu é a pressão do superego em torno do que somos para que sejamos o “eu ideal” dos outros, notavelmente inatingível.
Familiares, ex-maridos, sistema judiciário, colegas de trabalho, vizinhança, todos fiscalizadores atentos ao cumprimento das expectativas sociais sobre a maternidade ideal, tão distante do real. Ao longo de quase 15 anos gastei tempo e energia na tentativa recorrente de ser uma mãe ideal aos olhos alheios, sem considerar, ao menos, as minhas reais possibilidades de existência. O resultado desse empenho inatingível foram choros, dores de cabeça, cansaço físico e mental, noite mal dormidas, mau-humor, frigidez sexual, alterações hormonais, estresse, isolamento social escolhido, ou seja, puro
desgaste.
Não se trata aqui de medida de amor por filhos e filhas. Este é, incontestavelmente, incondicional. Sou mãe, e meu amor por meus filhos me impulsiona a fazer muito por eles. São as pessoas que mais amo nessa minha vida. Trata-se da importante desconstrução da maternidade que oprime, condiciona, normatiza, padroniza, e por vezes adoece.
Algumas leituras foram essenciais para despertar um novo olhar sobre ser mulher para além de ser mãe. Dentre estas, faço questão de citar algumas: a grandiosa militante Lélia Gonzalez com sua história de vida de luta contra o racismo e o machismo; a brilhante escritora do “Diário de uma Favelada”, mãe de três como eu, Carolina Maria de Jesus; a iluminadora Maya Angelou com sua belíssima e reflexiva escrita em “Eu sei porque o pássaro canta na gaiola”; e por fim a firmeza inspiradora de Conceição Evaristo e suas afirmações escritas em “Olhos D ́água”. Mulheres fortes, (re)existentes, que tratam da existência feminina desvinculado do ideal de perfeição e dedicação exclusiva à família. Mulheres são diversas, e que bom que é assim.
A obrigatoriedade convencional e histórica de mulheres subservientes e docilmente recatadas, dedicadas ao lar constituíram, desde a Antiguidade, a projeção da mãe exemplar no imaginário popular. No decorrer da história da humanidade até a contemporaneidade, as variadas expectativas coletivas em torno do comportamento “desejado” para esse modelo de mãe supõem que “maternar” envolve tão somente amor incondicional, alegrias, afetividade, sorrisos angelicais e pureza.
Ledo engano!
Tudo isso pode, variavelmente, ser parte do cotidiano de uma mãe real, entretanto as responsabilidades da maternidade como ela é, desde a gestação, não é só boa, só fácil, só feliz. Não mesmo! Reconhecer que a maternidade não é sempre maravilhosa e linda é um passo importante para admitir que todas nós, mulheres reais, temos limites. E é muito importante respeitar todos eles. Ficamos tristes, cansadas, sonolentas, ansiosas, frustradas, reclamonas, questionadoras, repetitivas, arrependidas, desestimuladas, confusas, desinteressadas, falantes, apreensivas, caladas, inconstantes, e essas variações de estado de existência tão comuns na essência humana parecem ser não permitidos para quem cria, educa e cuida de crianças. É como se estivéssemos “condenadas” a sermos produtivas todos os dias, o tempo inteiro, e não houvesse espaço para ser gente porque tem
que ser exclusivamente mãe. Mas não precisa ser assim. Não mesmo!
Por Roberta Evelyn Passos
Mãe-solo de três garotos
Outubro/2021