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O que você chama de amor é trabalho não remunerado: uma análise da obra “O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista” de Silvia Federici

No primeiro capítulo do livro O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista, Silvia Federici (2019) discute a teorização e a politização do trabalho doméstico como um caminho para a compreensão da exploração das mulheres na organização da sociedade capitalista. Em sua obra, Federici afirma que o trabalho doméstico invisível constitui um elemento crucial na exploração das mulheres no capitalismo e, ao propor a ampliação da análise marxista acerca do trabalho não remunerado, a autora posiciona a dona de casa na luta de classes como sujeita fundamental na reprodução da força de trabalho, argumentando que o trabalho doméstico constitui a base desse sistema.


Desmistificando a ideia do trabalho por amor, Federici sustenta que o trabalho doméstico se configura como a manipulação "mais disseminada e a violência mais sutil que o capitalismo já perpetuou contra qualquer setor da classe trabalhadora.” (p.42). Segundo a autora, mesmo que todos os trabalhadores sejam explorados, a existência de um salário cria a aparência de um acordo justo, uma vez que fornece reconhecimento social, possibilidade de barganha e condições de reivindicação por direitos. Dessa forma, por mais explorado que o trabalhador seja, o trabalhador não se confunde com o seu próprio trabalho, pelo fato de ser assalariado. Isso não ocorre no caso das mulheres, pois o trabalho doméstico não apenas é imposto, como também é naturalizado, transformado em um atributo inerente ao feminino e internalizado enquanto parte da psique e da personalidade das mulheres.


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Nesse sentido, a autora argumenta que o capital construiu a ideia de que o trabalho doméstico é algo natural e inevitável, associando-o à realização pessoal, o que justificaria a sua não remuneração. Nessas condições, por ser não remunerado e por ser naturalizado como feminino, o trabalho doméstico converte-se, segundo a filósofa, em uma poderosa arma política, pois, ao ser transformado em amor, as pessoas deixam de perceber o trabalho doméstico como trabalho, o que impede o questionamento e a luta contra a sua exploração.


Para Federici, ao negar um salário ao trabalho doméstico e transformá-lo em amor, o capitalismo produziu uma obra-prima:


"Primeiramente, ele obteve uma enorme quantidade de trabalho quase de graça e assegurou-se de que as mulheres, longe de lutar contra essa situação, procurariam esse trabalho como se fosse a melhor coisa da vida (as palavras mágicas: “sim, querida, você é uma mulher de verdade”). Ao mesmo tempo, o capital também disciplinou o homem trabalhador, ao tornar “sua” mulher dependente de seu trabalho e de seu salário, e o aprisionou nessa disciplina, dando-lhe uma criada, depois de ele próprio trabalhar bastante na fábrica ou no escritório." (Federici, 2017, p.44)

Nesse esteio, Silvia Federici defende que lutar por salários para o trabalho doméstico é um gesto revolucionário, pois essa ação rompe com a concepção de que esse trabalho deriva da natureza feminina, ao passo que denuncia a imposição de um papel social específico às mulheres. A autora enfatiza ainda que o objetivo dessa reivindicação não é incluir o trabalho doméstico na lógica capitalista, uma vez que as mulheres nunca estiveram fora dela, mas sim destruir o papel que o capitalismo lhes atribuiu. Desse modo, reivindicar salários para o trabalho doméstico constituiria o primeiro passo para torná-lo visível e, sobretudo, para recusá-lo.


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Federici acredita que o capitalismo lucra quando as mulheres cozinham, sorriem e fazem sexo. Para a autora, tais tarefas não são desempenhadas porque são mais fáceis para as mulheres, mas sim porque lhes faltam alternativas.


"Nosso rosto se tornou distorcido de tanto sorrir, nossos sentimentos se perderam de tanto amar, nossa hipersexualização nos deixou completamente dessexualizadas" (p. 48).

Ao desmontar a associação entre o trabalho doméstico e o amor, Silvia Federici nos revela o papel estrutural do capitalismo na exploração das mulheres. Tornar o trabalho doméstico visível, nomeá-lo como trabalho e reivindicar seu reconhecimento material não significa, para a autora, defender a sua inclusão na lógica do capital, mas sim criar condições para a sua recusa. Assim, ao demonstrar que o amor foi mobilizado como máscara ideológica para ocultar o trabalho não remunerado - que gera riqueza e constitui-se como base do sistema capitalista - a autora também abre brechas para que nós mulheres possamos redefinir o que consideramos amor e o que chamamos de trabalho.


Referências:


FEDERICI, Silvia. O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Elefante, 2019.


Acesse essa e outras obras completas da autora em: https://coletivosycorax.org/traducoes/

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