Saúde Mental e Adoção Judicial: Maternidades em Questão
'O processo de maternidade implica num primeiro momento o acolhimento do “nascimento simbólico” desse filho (filiação) ainda no período da gestação e depois a adoção do significante “mãe” e suas respectivas representações simbólicas. Enquanto a maternagem (que diz respeito à função materna) envolve as práticas de cuidado, nutrição e suporte emocional. Sendo esta última, construída através dos vínculos afetivos estabelecidos. "
Ou seja, a maternidade, sendo esta biológica ou não, para se estabelecer envolve uma dimensão adotiva desse filho que chegará, bem como a introjeção desse papel social, quando isso não acontece, não é possível alçar o lugar de mãe (DARÓS, 2016/ grifo meu). Deste modo, podemos também pensar que o exercício da parentalidade demanda a responsabilidade dos adultos para com um infante (FONSECA, 2002) independentemente do registro de consanguinidade e a manutenção desta, exige a priori a legitimação de um lugar-de-ser dos envolvidos. No caso da adoção judicial, a adotante precisa também formalizar esse desejo por vias legais, no dispositivo judiciário.
Geralmente adotantes focam em preencher os requisitos solicitados para inscrição no programa e com questões burocráticas para habilitação ao processo e nem sempre se atentam para a necessidade de olhar de maneira mais cuidadosa para sua saúde mental tanto no âmbito individual como no caso de adotantes em parceria, na esfera intersubjetiva durante essa trajetória. O senso comum costuma atrelar o significante saúde à ausência de doença. Mas a OMS nos traz um conceito interessante para pensarmos saúde: “estado completo de bem estar físico, mental e social” (AMARANTE, 2019, p.18) o que nos convida a avaliar a necessidade de estarmos em equilíbrio tanto na esfera privada como nos laços sociais que estabelecemos para estarmos de fato saudáveis, inclusive mentalmente. Nesse sentido nos convém problematizar: é possível que alguém tenha esse tal estado de “bem estar e plenitude” quando se está mergulhado num oceano de expectativas e desejos? Quando há um turbilhão de sentimentos implicados nesse processo de “gerar-ação”?
As etapas do processo de adoção judicial são também um tempo de “gerar-ação”, pois envolve a preparação da mãe-adotante para gerar a ação da escolha, ou seja, o match entre esta e a criança ou adolescente a ser adotado. E essa dinâmica pode ser extremamente angustiante e conflitante, pois esta escolha envolve o lugar-de-ser desse filho na estrutura familiar. O gestar (biológico ou não) implica no “ter que se haver” com esses dilemas. Na dinâmica maternal há um chamamento a um resgate de memórias afetivas, há de certa forma um reencontro com a história pregressa enquanto filha e com os vínculos estabelecidos com sua ancestralidade, pois estes operam diretamente em nossa subjetividade (CHECCHINATO, 2007)
O desejo da maternidade diz muito acerca do modo que experienciamos esse relacionamento com a nossa parentalidade, para tanto esta mulher-mãe-adotante se vê convocada a um estado mental de identificação ou rejeição a esse laço afetivo anterior e isso pode ser crucial para o estabelecimento ou não da vinculação parental ulterior. Por esse motivo a saúde mental não pode ser negligenciada durante o desenrolar do processo de adoção judicial. O mesmo pode se aplicar as mães biológicas e demais configurações do contemporâneo. Para tanto, é indispensável que essa adotante tenha um espaço de fala para dar contorno e nome aos seus sentimentos, expectativas e narrativas, elementos que se entrelaçam às questões da ordem do desejo.
Ademais é importante um acompanhamento psicológico/psicanalítico para acolher as demandas e impasses da maternidade a fim de que esse sujeito consiga lidar com esse turbilhão de emoções, sentimentos, expectativas e idealizações que envolvem esse processo. Nesse sentido, a psicanálise nos convida a considerar o jogo de palavras e a desvelar seus significados nas entrelinhas e semi-ditos. A palavra que dá corpo a linguagem é algo potente assim como as maternidades em suas singularidades o são para a sociedade. No caso das mães adotantes, cuidar da saúde mental é salutar para a promoção de um ambiente seguro e acolhedor para o adotado judicialmente, pois este em geral já foi atravessado em alguma medida pelo trauma precoce, negligência e/ou abandono. É preciso criar laços de afeto, confiança, respeito e paciência para que a função parental seja aceita também por esse adotante e isso por muitas das vezes demanda tempo.
Para fins de conclusão é importante frisar que apenas o sonho ou o desejo de ser mãe não sustentam esse lugar parental nem instituem o laço social familiar, é preciso dedicação, autoconhecimento, resiliência, empatia e entendimento do que a maternagem representa; isso precisa estar bem consolidado para que o processo de adaptação seja natural e saudável. Adoção judicial é além de um ato de amor: é principalmente ter responsabilidade afetiva com alguém que se escolhe gerar no coração.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AMARANTE, Paulo. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2019.
CHECCHINATO, Durval. Psicanálise de pais – Criança sintoma dos pais. Rio de Janeiro: Companhia De Freud, 2007.
DARÓS, Lindomar Expedito Silva. Adoção judicial de filhas e/ou filhos em conjugalidades LGBTTIQ. São Paulo: Martins Fontes, 2021.
FONSECA, Claudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 2002.
Sobre a autora: Marcella Brito dos Santos - Psicanalista e pesquisadora. Pós graduanda em teoria psicanalítica na Faculdade Venda Nova do Imigrante. Capacitação em Primeiros Socorros Psicológicos, Prevenção ao suicídio, Saúde Mental e Atenção psicossocial no contexto da Covid19, Psicanálise da violência doméstica, Prevenção a automutilação, Abuso e exploração sexual infantil. Atua como voluntária no Grupo de apoio a adoção Cláudia Diniz. Mãe do Fernando, Miguel e Isabella. marcellabrito.psic@gmail.com