top of page

Ser mãe, mulher negra periférica, professora e pesquisadora em tempos de COVID-19.

Artigo escrito por Josiane Nazaré Peçanha de Souza, pesquisadora e colunista do Núcleo Materna

Ser mãe, mulher negra periférica, professora e pesquisadora em tempos de COVID-19.

Josiane Nazaré Peçanha de Souza¹

  1. Introdução:

Mesmo a luta histórica dos movimentos negros brasileiros – de negros e negras pelo ingresso mais democrático junto às universidades e a conquista das cotas raciais nas universidades públicas brasileiras – não foi capaz de reparar plenamente as barreiras raciais e sociais que permanecem como reflexo do racismo estrutural de nosso país, decorrente de uma abolição da escravatura mal resolvida. Tal mazela traz como resultado a dificuldade de alunos e alunas negras a permanecerem nos cursos. 


Portanto, as desigualdades de raça, classe e gênero se apresentam como realidades cruéis e altamente limitadoras para que mães, mulheres negras, universitárias e trabalhadoras permaneçam estudando nos centros universitários, tanto públicos quanto privados. Conforme complementa Cibele da Silva Henriques (2016) ao tratar sobre universidades públicas:


Contudo, a instituição da reserva de vagas pra negros e carentes na educação superior pública não dissolveu as desigualdades de classe e raça existentes nas relações acadêmicas, principalmente nas Instituições Federais de Ensino Superior, pois, para além da luta pelo acesso, se faz necessário lutar para a construção do lugar do negro na universidade pública brasileira. Desse modo, para que possamos enfrentar efetivamente as desigualdades de classe, gênero, geração, raça e etnia na educação superior, é preciso compreender como tais heterogeneidades se gestam e se perpetuam nas relações educacionais no Brasil. (HENRIQUES, 2016, p.69)


Como enfrentar de fato estas desigualdades de raça, classe, gênero e geração na Educação superior não será o foco principal nesta pesquisa, mas serão tocadas ao longo deste estudo as dificuldades em permanecer estudando devido a tais questões. O objetivo principal é levantar dados qualitativos aproximativos sobre como está sendo gerir a maternidade, o trabalho, os estudos e pesquisa mediante a existência de uma grave crise sanitária em curso de modo pandêmico no Brasil e no mundo. A pesquisa tem como objetivo principal responder a esta problematização. 


As discussões que pautam as intersecções existentes entre raça, classe e gênero são orientações presentes na vida da pesquisada/observada, que é mãe de dois filhos que frequentam a Educação Básica, mulher negra periférica, da camada média baixa, professora e pesquisadora. Será realizada uma pesquisa de natureza qualitativa, natural (OLIVEIRA, 2016), com breve pesquisa bibliográfica. A pesquisa ainda em curso é desenvolvida na periferia de uma cidade metropolitana do Rio de Janeiro. Segundo Crenshaw (2002) o termo interseccionalidades consiste em:


A associação de sistemas múltiplos de subordinação tem sido descrita de

vários modos: discriminação composta, cargas múltiplas, ou como dupla ou

tripla discriminação. A interseccionalidade é uma conceituação do problema

que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação

entre dois ou mais eixos de subordinação. Ela trata especificamente da forma

pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (Crenshaw, 2002, p. 177).


A estudante está concluindo uma pós-graduação à distância, em História e Cultura Afrobrasileira, num momento em que todos na residência acessam um único computador. Neste estudo serão tratadas inúmeras interseccionalidades: a observada é uma mãe, mulher negra, periférica, professora e pedagoga que divide sua jornada de trabalho de cerca de quarenta horas em dois municípios afastados um do outro no Estado do Rio de Janeiro. Esta era a realidade antes da pandemia do Coronavírus (COVID-19), ainda em curso.


Serão articulados neste estudo inicialmente as autoras: Cibele da Silva Henriques (2016), Kimberly Crenshaw (2002), Jurema Werneck (2016) e algumas pesquisas vinculadas em jornais que debatem vários aspectos significativos relativos à pandemia do novo Coronavírus, entre outras reflexões.

  1. Como está a realidade da estudante na pandemia?


Fonte: Instagram@ESCOLADEPASSARINHOS


Na família da pesquisada uma pessoa foi acometida com a doença, o que causou grande impacto emocional na família. A própria, no início da pandemia, ainda sem a possibilidade de testagens em massa, apresentou todos os sintomas da doença pelo período de um mês, antes mesmo do isolamento social, indo trabalhar doente normalmente utilizando transportes públicos. Como a dimensão do racismo institucional é também presente na saúde, os médicos não a afastaram de seus trabalhos. O mito da mulher negra ser forte é um reflexo do racismo instaurado desde os tempos da escravidão e que, de modo recorrente, infelizmente é ratificado por muitos profissionais da Saúde, como reflexo do racismo institucional. Segundo Jurema Werneck (2016), o racismo institucional equivaleria a ações e políticas institucionais capazes de produzir e/ou manter a vulnerabilidade de indivíduos e grupos sociais vitimados pelo racismo”(WERNECK, 2016, p. 543)

Há inúmeras pesquisas com recorte racial que indicam que os principais afetados pela doença do COVID-19 são exatamente as pessoas negras² , dentre os quais as mulheres negras trabalhadoras são a maioria e continuam trabalhando em meio à pandemia, sem o direito ao isolamento social. Deste número, a maioria destas mulheres também são mães.

No período após a recuperação, a analisada se engajou numa rede de solidariedade para auxiliar com a distribuição de cestas básicas cinquenta e cinco famílias, em sua grande maioria, negras, chefiadas por mulheres negras e, em grande parte, de mães solo. Todas essas famílias eram moradoras de favelas da região, em situação de vulnerabilidade social aprofundada pela pandemia, em que a maioria está desempregada³ . Todos os núcleos possuíam cerca de dois a quatro filhos em idade escolar cursando a Educação Básica, em escolas públicas municipais ou estaduais da localidade. As chefes de família estavam desempregadas, pois se dedicavam a trabalhos informais e/ou à serviços domésticos e haviam sido dispensadas pelas patroas neste momento.

Na Educação há uma grande discussão sobre a implementação do ensino remoto ou à distância em curso desde que se iniciou a pandemia, que cruza com a realidade destas famílias de mulheres negras. A maioria das escolas privadas aderiu, mas há o atenuante que este público não é afetado com a exclusão social em decorrência da desigualdade socioeconômica, visto que está na faixa econômica que permite a aquisição e uso de recursos tecnológicos para tal.

Junto à rede pública de ensino esta necessidade que se coloca frente à pandemia acirrou ainda mais, as graves desigualdades educacionais que já ocorriam na Educação Brasileira, como reflexo das profundas disparidades socioeconômicas altamente racializadas em nosso país. Com outro agravante: o número altíssimo relativo à exclusão social em nosso estado, como reflexo da pobreza. Vale ratificar que a observada é mãe de um aluno da rede estadual de ensino, da periferia e também professora, tendo sido atingida implacavelmente com esta realidade em sua duplicidade, como mãe e professora, o que será desdobrado a seguir.

No cenário pandêmico uma série de estudos foram realizados sobre o impacto da implementação “a fórceps” de um modelo de Educação que se pretende à distância, mas na verdade se trata muitas vezes de um arremedo, pois se verifica altamente excludente com vários segmentos de estudantes, atingindo ferozmente a população negra e/ou pobre, favelada e desrespeitando frontalmente o princípio constitucional da universalização do ensino público. A máxima constitucional que o Estado Brasileiro tem o dever de garantir ensino gratuito, laico e de qualidade para todos está sendo totalmente desrespeitado. E ainda, não é exagero afirmar que se trata de uma política altamente discriminatória com negros, mulheres, pobres e periféricos, pessoas com deficiência, dentre outros grupos sociais, conforme nos coloca em reflexão o debate do Jornal Nexo (2020):

É relativamente fácil falar em desigualdades educacionais no Brasil. O difícil é conter o discurso da urgência que sempre interdita esse debate no momento em que as decisões são tomadas. É sempre caro demais. Inconveniente demais. Irrealista demais. Utópico demais. Mas como classificar a possibilidade de exclusão educacional que sempre esteve aí, gritando, na frente de todos? O que se vê, até aqui, são os severos limites pedagógicos e o restrito alcance dos programas de ensino não-presencial no país, que excluem ativamente uma massa de estudantes ao mesmo tempo em que degradam as condições de trabalho de uma massa de profissionais da educação.[...] Para enfrentar tais riscos é preciso chamar as coisas pelo nome. A pandemia de covid-19 tem levado governos a adotar políticas públicas emergenciais de caráter mais do que “desigual”: são políticas discriminatórias. Conforme definição estabelecida há 60 anos na Convenção relativa à luta contra a discriminação no ensino, da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), “discriminação” é qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência que, por motivo de raça, sexo, origem, condição econômica etc., tenha por objeto ou efeito destruir ou alterar a igualdade de tratamento no ensino, privando o acesso ou limitando a nível inferior a educação de qualquer pessoa ou grupo. É isso o que se verifica desde os primeiros passos dessas políticas de ensino remoto, que excluem e prejudicam de forma sistemática, em função da desigual distribuição dos prejuízos causados pela crise em relação a pobres, não-brancos, moradores da periferia e do campo, pessoas com deficiência e mulheres. (XIMENES e outros, 2020)

A realidade educacional e pandêmica atingiu a vida da pesquisada. De uma hora para outra alterou radicalmente sua rotina: se viu obrigada a dividir as tarefas domésticas e se adaptar para realizar seu trabalho de forma remota como professora e pedagoga da Educação Básica (dispondo de apenas um computador) com seu companheiro também professor, além de também acompanhar os estudos de ambos os filhos. O mais velho é aluno da rede pública estadual de ensino e recebeu as apostilas do primeiro bimestre apenas no segundo, o que ocorreu com todas as famílias que ajudou nas redes de solidariedade. A educadora se viu na obrigação de pesquisar, ler, estabelecer relações mínimas de afeto e ensino-aprendizagem com seus alunos, além também de reforçar suas relações de trabalho remoto junto às equipes diretivas e ao corpo docente de ambas as redes que leciona. Há ainda o acréscimo de dar atenção aos pais idosos que estão isolados em outra residência, assim como amigos e demais parentes.

  1. Conclusão aproximativa: Como está sendo gerir a maternidade, o trabalho, os estudos e pesquisa, mediante a existência de uma grave crise sanitária em curso de modo pandêmico no Brasil e no mundo?

As consequências aprofundadas de ordem psicológicas e sociais ainda não são de todo conhecidas, visto que, a pandemia ainda está em curso. Logo, as colocações serão aproximativas. Mas é possível pontuar um acúmulo de observações constantes frente a essa nova realidade que está em suspenso a cerca de quatro meses.

Toda a nova rotina e as discussões postas anteriormente têm provocado na mãe pesquisada oscilações de humor como tristeza (depressão), alegria, raiva; problemas de concentração e atenção; distúrbios do sono; perda ou aumento de apetite, resultando em oscilação de peso. Grande cansaço mental, em suma.

A pesquisada enfrenta dificuldades quanto ao desenvolvimento de seu trabalho educativo remoto, assim como quanto ao término de seu trabalho de conclusão de curso que versa sobre identidade racial na Educação Infantil. A conhecida “culpa materna” também tem sido uma constante quanto ao acompanhamento dos estudos de seus filhos, pois muitas vezes não encontra concentração, nem ânimo para fazê-lo da forma que gostaria.

Cabe salientar que este é um estudo aproximativo desenvolvido, necessitando de

maiores conclusões e desdobramentos. Trata-se de um primeiro acúmulo, visto que

ainda estamos em isolamento social e passamos do número de mais de setenta mil

mortes devido ao contágio de CORONAVÍRUS em nosso país.

1. Professora da Educação Básica, mestre em ensino de História. Colunista do Núcleo Materna, é pesquisadora associada à ABPN, ao NUFIPE-UFF, ao GPMC-UFRRJ. Membra do Coletivo EKÓ – Educadorxs Negrxs e Indígenas de Duque de Caxias e ao Coletivo Afrodivas de Niterói – Brasileiras & Cia.

2. Segundo dados divulgados pelo portal Notícias UOL em junho deste ano, “por 14 pesquisadores do NOIS (Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde) da Puc (Pontifícia Universidade Católica) do Rio de Janeiro, em que foram analisados 29.933 "casos encerrados" de COVID-19 (ou seja, com óbito ou recuperação). Dos 8.963 pacientes negros internados, 54,8% morreram nos hospitais. Entre os 9.988 brancos, a taxa de letalidade foi de 37,9%.”

3. “A crise causada pelo coronavírus é mais dramática para as mulheres e empurra boa parte da força de trabalho feminina de volta para casa. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnadc) mostrou que 7 milhões de mulheres abandonaram o mercado de trabalho na última quinzena de março, quando começou a quarentena.”(O GLOBO, junho, 2020)

Referências bibliográficas:

CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, 2002, p.171-188.

HENRIQUES, Cibele da Silva. Mulher, universitária, trabalhadora, negra e mãe: a luta das alunas mães trabalhadoras negras pelo direito à educação superior no Brasil. Mulheres em movimento nas lutas sociais e sindicais. Universidade e sociedade, ANDES- SN, nº 58, junho de 2016, p. 68-79.

Covid mata 55% dos negros e 38% dos brancos internados no país, diz estudo. Disponível em: . Acesso em: 13/07/2020.

OLIVEIRA, Maria Marly de. Como fazer pesquisa qualitativa. - 7. ed. Revista e atualizada. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.

Pandemia faz sete milhões de mulheres deixarem o mercado de trabalho. Disponível em . Acesso em : 12/07/2020.

WERNECK, Jurema. Racismo Institucional e saúde da população negra. Sociedade Saúde. São Paulo, V.25, n. 3, 2016, p.535-549.

XIMENES, Salomão; FERNANDES, Cássio; PELLANDA, Andressa e BRAZ, Marina. A discriminação no ensino não-presencial em tempos de pandemia. São Paulo, Nexo, 2020. Disponível em: . Acesso em: 14/07/2020.

Gostaria de publicar o seu artigo nas colunas do Núcleo Materna?

  • Facebook
  • Twitter
  • Instagram
  • YouTube ícone social
bottom of page