O Silêncio também matou George Floyd
" Todos estes casos de genocídio negro na diáspora precisam sair do domínio da normalidade e do lugar de natural, do banal. Esta banalização do assassinato cotidiano de negros e negras recebe uma manifestação que o legitima e o perpetua. Enquanto negros e negras gritam para viver, e mesmo assim, isso é lido como agressividade, o silêncio daqueles que observam é o cúmplice perfeito deste Sistema Capitalista que nos mata e se autofinancia com a perpetuação do Racismo (...)"
Meus filhos, há uma lição escondida por detrás da morte por asfixia de George Floyd, nos Estados Unidos. Uma lição que ninguém está se atentando, que se trata de uma das manifestações cotidianas do Racismo estrutural, este grande e antigo sistema ideológico planetário, que se manifesta ao longo da História da humanidade e é ampliado, repaginado e aprofundado de acordo com os sistemas sociopolíticos-econômicos instituídos, em suas fases ou particularidades de autodefesas.
George Floyd é o homem negro que foi assassinado no dia 25 de maio, quando o policial Derek Chauvin, de forma doentia e perversa, com as mãos no bolso e sorriso no rosto asfixiou este rapaz, pressionando o joelho em seu pescoço, em Minneapolis, Minnesota, nos Estados Unidos. Este é apenas um dos casos da onda de assassinatos de adolescentes e jovens negros nos Estados Unidos, que se asseverou de 2012 para cá e deu origem ao movimento “Black Lives Matter” (Vidas negras Importam).
Vale ressaltar aqui, que se alinha quase ao início da intensificação das retiradas de direitos, do aumento da violência de Estado cada vez mais mínimo, da implementação da necropolítica² de modo mais aprofundado como projeto do Capitalismo, cada vez mais selvagem e financeiro.
Aqui no Brasil, inúmeros negros e negras também morrem como George, como desdobramento e intensificação da política de morte, do genocídio negro como política do Estado Brasileiro mínimo, neoliberal. Há décadas, há inúmeras denúncias neste sentido. Posso dizer, grosso modo, que desde a criação da Polícia Imperial em 1809 para defesa do regime, e também para reprimir a “vadiagem”³ de negros forros ou libertos e escravizados, os capoeiristas, sambistas, os pertencentes às religiões de matrizes africanas, dentre outras criminalizações, que muito tempo depois virou decreto-lei.
Assim como para reprimir as “cabeças de porco ou cortiços” (1850) e posteriormente, as primeiras favelas (1894) do centro do Rio, com começo pelo morro da Providência e Santo Antônio. A repressão às populações que vivem nas favelas é muito antiga e cuja formação populacional tem origem nos desabrigados dos cortiços com a política higienista (1866-1873) e nos foros e desvalidos do Exército Brasileiro, abandonados nos pós-guerras do Paraguai (1865-1870)4* e de Canudos (1896-1867). Todos aqueles que viram os acordos descumpridos de que receberiam títulos de terras e empregos, caso voltassem vivos destas guerras injustas e vergonhosas. Mas o Governo Brasileiro não cumpriu, como não desenvolveu até hoje políticas públicas que incluíssem de fato, os “libertos” da “farsa da Abolição da Escravatura em 1888”, esta alcançada com uma verdadeira “Avalanche negra” em todo país!
Mas voltando. Na mesma época que George Floyd foi assassinado pelo Policial gritando “Eu não consigo respirar”, com uma pequena multidão em volta, observando. João Pedro, com 14 anos, seus primos e tios, na favela do Salgueiro, em São Gonçalo, Rio de Janeiro, no dia 18 de maio tentavam se manter respirando dentro de casa, se protegendo do contágio de COVID-19. Isolamento este impossível para seus pais, que tiveram que sair para trabalhar.
A maioria que está saindo para trabalhar e morrendo em decorrência do CORONAVÍRUS, frente ao desmonte do Sistema Único de Saúde também, são os trabalhadores e trabalhadoras negras. Vale lembrar rapidamente, que a primeira morte por COVID-19 foi de uma mulher negra, empregada doméstica. Mas a Polícia acabou com o direito de respirar de João matando-o com um tiro de fuzil pelas costas. Este é apenas um dos exemplos das cinco mortes de adolescentes e jovens no Estado do Rio de Janeiro, entre a semana que ocorreu a morte de João Pedro, no país que mata um jovem negro a cada 23 minutos.
Todos estes casos de genocídio negro na diáspora precisam sair do domínio da normalidade e do lugar de natural, do banal. Esta banalização do assassinato cotidiano de negros e negras recebe uma manifestação que o legitima e o perpetua. Enquanto negros e negras gritam para viver, e mesmo assim, isso é lido como agressividade, o silêncio daqueles que observam é o cúmplice perfeito deste Sistema Capitalista que nos mata e se autofinancia com a perpetuação do Racismo.
Cúmplice perfeito deste racismo estrutural que insiste em nos tratar como animais ou como sujeitos de segunda classe, meus filhos. Sim, prestem atenção! Quando George Floyd morreu alguém estava silenciosamente filmando. As pessoas ao redor estavam em silêncio. Frente uma injustiça, se você se silencia, você fortalece a opressão. Veja bem meus filhos: o Policial sorri com o silêncio daqueles que observam! Ele se fortalece em sua opressão racista!
O silêncio, meus filhos, é para vocês ouvirem os passarinhos, para ouvirem o barulho do vento, para ouvirem o barulho das ondas do mar, para ouvirem as lições e memórias dos seus avós ou professores! O silêncio é para contemplar uma Peça Teatral, uma bela música, um belo filme! O silêncio é para o aprendizado, não é um exercício para covardes!
Portanto, o que também matou George Floyd foi o silêncio de todos aqueles que estavam ao seu redor, observando! O que também mata cotidianamente, negras e negros pelo mundo, frente a ausência de direitos, à invisibilidade, à marginalidade, é o silêncio mal utilizado por muitos, que legitima todos aqueles ditames necrófilos do Capitalismo financeiro, que faz sua máquina girar, também em plena pandemia, com o combustível de nosso sangue negro.
Quebrem o silêncio! Todos aqueles que se silenciam frente ao Racismo e demais injustiças, infelizmente, racistas e injustos também são! Desmond Tutu diz “Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”, meus filhos!
1 Mãe de dois filhxs, é Professora e Pedagoga formada pela UFF, Especialista em Educação em Direitos Humanos, questões raciais e sociais, mestre em ensino de História pela UERJ (ProfHistória). Membra da ABPN, NUFIPE-UFF, GPMC-UFRRJ, Coletivo EKÓ – Educadorxs negrxs e indígenas de Duque de Caxias e Coletivo Afrodivas de Niterói- Brasileira & Cia
2 Conceito alcunhado pelo filósofo negro, historiador, teórico político e professor universitário camaronense Aquille Mbembe, que critica o poder do Estado em escolher quem deve viver e quem deve morrer.
3 Na verdade, era uma dimensão da Repressão do estado imperial brasileiro aos negros que conseguiam liberdade e andavam pelas ruas em busca de emprego, moradia, desenvolvimento cultural e lazer entre outros direitos que já eram negados. Depois deu origem ao decreto-lei 3.688 em 1941.
4 Todo este resumo sobre formação da territorialidade foi conseguida junto ao livro: CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela: a produção do “espaço criminalizado no Rio de Janeiro.- 2ed. – Rio de Janeiro: Beltrand Brasil, 2007.
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