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A Maternização da Docência Infantil

"Para entender essa questão precisei entender o processo histórico que levou à majoritariedade das mulheres como professoras no Ensino Infantil aqui no Brasil, em dimensão estrutural e subjetiva (...)"

No final de fevereiro a Secretaria da Educação e a Secretaria de Desenvolvimento Econômico da Prefeitura de São Paulo criaram o Programa Operação Trabalho para a volta às aulas em pleno momento crítico da pandemia. A proposta era empregar 4.500 mães desempregadas que tivessem seus filhos matriculados em escolas da rede municipal, para realizar a tarefa de monitoramento do protocolo de segurança sanitária entre as crianças.


É claro que na loucura da insegurança pela falta de auxílio emergencial, sem muito pensar eu me inscrevi e fui aceita no programa. Cheguei a trabalhar três dias num polo CEU aqui da Zona Sul. No primeiro dia, houve uma movimentação bizarra de sindicalistas em greve na porta da escola, intimidando os funcionários - até aí ok - mas principalmente as crianças, com falas impensadas e agressivas como "manter as crianças aqui significa matar suas famílias!". Nem preciso dizer que teve chororô, crianças aterrorizadas querendo ir pra casa, diretora ligando pros pais irem buscar, nós sem podermos sequer abraçá-las... uma atmosfera de muito medo e desamparo.


Nessa primeira semana de março, o número de mortes registradas aumentou consideravelmente atingindo 3.000 pessoas por dia, surgiram três casos confirmados entre as salas que eu monitorei e foi quando desisti do trabalho, pensando em cada segundo enquanto estive lá no medo de infectar minha mãe e avó que são com quem eu moro e ainda não haviam sido vacinadas. Um dia antes uma outra mãe-monitora também havia desistido. Fiquei triste e muito afetada por ter que escolher entre proteger a minha família e "ajudar" - ainda me pergunto se estava mesmo - aquelas crianças que se abraçavam, usavam a máscara embaixo do nariz ou às vezes não usavam, que relutavam em lavar as mãos antes e depois de fazer xixi, "ai tia, não precisa!". Semana passada voltando do mercado, fui abordada na rua por uma dessas crianças com quem fiz amizade e me reconheceu, e ela andava de bicicleta com outras crianças na calçada - todas sem máscara.


Recapitulando o cenário da escola: um caos. A equipe escolar não estava minimamente preparada burocrática e materialmente para nos receber - éramos três mães-monitoras por escola, uma para cada dos três períodos estipulados. Uma pessoa para monitorar quatro banheiros (dois por andar, eu precisava me dividir entre dois andares, então quando estava no primeiro as crianças do segundo ficavam sem esse "auxílio" e vice-versa - já explicitando a inutilidade do serviço) e sabe-se lá quantas dezenas de mãozinhas. Quando chegamos no horário combinado pelo CATE (Centro de Apoio ao Trabalho e Empreendedorismo, onde levamos nossos documentos para cadastro e receber instruções um dia antes), a diretora não sabia que nós já estaríamos lá e nem como nos receber e instruir. Ela disse que toda a comunicação e interação entre a instituição e os órgãos da Prefeitura - como com a Diretoria Regional de Ensino - estavam assim, cheias de lacunas e desinformação, gerando muita sobrecarga nas funcionárias, em sua maioria mulheres, que passaram a fazer grande parte do trabalho sistemático que antes não faziam. Eu decidi relatar essa breve experiência porque agora, dois meses depois e após mais uma reviravolta de fechamento e outro retorno, eu me pergunto como está se dando o desenrolar desse programa, já que pesquiso sobre ele e não encontro informações. Para maior contextualização desse problema, trago uma reflexão...


Tenho dois filhos, e cada um estudava em uma escola. É claro que nesses quatro anos em que convivi com as duas escolas, com as diretoras e professoras, já havia notado que não há nelas professores homens na creche. Só conheci um coordenador pedagógico homem. Mas conviver ali dentro, observando com olhar crítico nos momentos livres mesmo que brevemente me fez questionar: de onde veio essa feminização do ofício de educar? Fui pesquisar a respeito e descobri o termo "maternização da docência".


Achei um artigo que começa nos fazendo questionar se confiaríamos em um homem como professor de crianças com menos de 10 anos; o que me levou imediatamente ao que senti e pensei num daqueles dias de monitora, em que fui ajudar uma menina - devia ter uns 4 anos - a usar o banheiro e ela prontamente me impediu, completamente desconfiada, como quem pensa "quem é essa estranha que apareceu aqui do nada e vai me vigiar?". Lembro de ter ficado muito reflexiva com esse ocorrido, já que desde o começo estive questionando por que só mulheres-mães foram convocadas para esse trabalho e não homens-pais, e nesse dia cheguei a me surpreender quando me peguei pensando "e se fosse um homem ali monitorando os meus filhos no banheiro?".


Para entender essa questão precisei entender o processo histórico que levou à majoritariedade das mulheres como professoras no Ensino Infantil aqui no Brasil, em dimensão estrutural e subjetiva. A profissão que foi quase exclusivamente masculina até século 19, foi deixando de ser financeiramente interessante aos homens com a formação da nova classe média trabalhadora (e o surgimento de melhores possibilidades para eles), ao passo que havia de se inserir as mulheres no mercado de trabalho mas mantendo-as dentro da esfera privada (a escola servindo aqui como extensão do ambiente doméstico). "Sendo então o ensino primário considerado uma extensão da formação moral e intelectual recebida em casa, observou-se que a educação das crianças estaria melhor cuidada nas mãos de uma mulher, a professora" perpetuando que fosse "tido como um trabalho tipicamente feminino, diretamente associado às habilidades afetivas de maternagem" explica o psicólogo Cássio Riedo (2018). Tudo isso instintivamente me fez pensar a relação abusiva imposta entre a mulher e a educação, a fim de entender esse fenômeno da maternização do magistério, lembrando também que a inferiorização salarial nessa área está obviamente atrelada a questão do trabalho doméstico não remunerado.


Para esmiuçar a generificação da educação infantil, me fez muito sentido pensar sobre a teoria das 4 partes do trabalho cognitivo da escritora Jessica Grose (2021). Ela divide a função da carga mental parental entre as tarefas de antecipar, identificar, decidir e monitorar. Sua pesquisa entre casais hétero com filhos mostrou que as tarefas de antecipar e monitorar, que exigem mais atenção mental do que física, são majoritariamente feitas pelas mães enquanto as de identificar e decidir, mais físicas do que mentais são as mais feitas pelos pais; explicitando a desigualdade entre o que as mulheres estão sempre fazendo primeiro porque os homens decidem simplesmente ignorar sabendo que as mulheres já o farão. É claro que nós mães estamos mais preocupadas em exercer todas essas tarefas do que os homens porque a pressão da sociedade contra as "mães ruins" é esmagadora versus a inexistência da pressão contra "pais ruins". Tudo isso contribui até hoje para o afastamento dos homens da área da educação infantil.

Voltando à questão do programa de mães-monitoras - chamado por alguns de "mães-guardiãs" - agora me é muito óbvio como essa foi uma manobra de pura e falaciosa maquiação sobre a falta de infra-estrutura para que as escolas públicas pudessem voltar a funcionar presencialmente, somente para agradar a elite com suas escolas particulares. O fato de terem contratado mães desempregadas priorizando sua seleção pela baixa renda, denuncia o oportunismo em mostrar suporte e efetividade provocando exposição de risco à uma classe já vulnerabilizada. Enfim, desde janeiro, foram registrados entre profissionais da educação da rede pública do Estado de São Paulo 2.392 casos e 76 mortes pela covid-19, segundo levantamento da Apeoesp.


Com tudo isso, acredito que para além da escassez de presença, a resistência e estigmatização à professores homens na educação primária esteja intimamente ligada ao cenário de ausência de cuidado e afeto vindo dos homens em geral, dado pela cultura de pais ausentes existente, pela cultura da pedofilia no país e pela falta de interesse de muitos homens em reverter todo esse quadro. É notável que vem havendo um aumento nesse interesse, mas ele é ainda muito pequeno - segundo o Censo Escolar de 4 anos atrás os homens somavam apenas 3,4% na profissão - comparado ao esforço que precisamos para fazer da educação infantil - em todas as esferas além da escolar - um ambiente onde os homens também estejam participando, e assim, desconstruindo e reparando de forma concreta e efetiva esses problemas que os afastam; para que então possamos superá-los. Da mesma maneira que a feminização da docência se dá como uma tautologia comportamental, assim também pode ser a reinserção dos professores e homens na convivência com as crianças.  Isso significa que a qualificação da educação deve ultrapassar a questão de gênero. Toda a sociedade precisa que confiemos nos homens como cuidadores e educadores. É o que o educador Ricardo da Cunha Oliveira (2018) diz sobre "olhar para o tempo da infância e desempenhar esse ofício abarca homem e mulher em busca de um bem comum: que as potencialidades dessas crianças emerjam". As crianças não são um "problema" só da mãe e da professora.


Imagem: captura de tela do vídeo <https://youtu.be/RJ78gBqk7-4>


Referências:

RIEDO, Cássio Ricardo Fares. A supremacia das mulheres no Ensino Infantil: feminização docente. [S. l.], 15 mar. 2018. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/apedra/2018/03/15/feminizacao-docente/. Acesso em: 20 abr. 2021.

GROSE, Jessica. Why Women Do the Household Worrying. The New York Times, [S. l.], 21 abr. 2021. The NYT Parenting Newsletter. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/04/21/parenting/women-gender-gap-domestic-work.html?auth=login-google1tap&login=google1tap. Acesso em: 22 abr. 2021.

OLIVEIRA, Ricardo da Cunha. Docência masculina na educação infantil. Núcleo do Conhecimento, [s. l.], 5 dez. 2018. Disponível em: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/pedagogia/docencia-masculina. Acesso em: 22 abr. 2021. 


Sobre a autora: Juliana Porto é mãe solo há 6 anos de uma menina e um menino, escritora autodidata e formada doula pela Multiplicando Doulas. É pré-vestibulanda almejando cursar Ciências Sociais e vem realizando pesquisa autônoma em gênero, maternidade e infância que registra em seu blog "A Desromancista". Foi cursista de Introdução aos Estudos Críticos da Maternidade pelo Projeto Mães na Universidade UFRJ. Além disso se interessa por psicologia analítica, astrologia e tarot. Nasceu e reside na zona sul de São Paulo.

"Eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for." Audre Lorde

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