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Ao Mesmo Tempo em Que Escrevo, Exerço o Meu Talento

"Em primeiro lugar, espero que essa mensagem te encontre bem. Sinceramente, espero que ela nem te encontre. Tenho um oceano a meu favor; e a função de bloqueio do número, então estarei torcendo daqui (...)"

Em primeiro lugar, espero que essa mensagem te encontre bem. Sinceramente, espero que ela nem te encontre. Tenho um oceano a meu favor; e a função de bloqueio do número, então estarei torcendo daqui.


Acredito que atingi esse ponto, eu já o conheço e já até falei sobre ele pra você: esse momento intransponível em que preciso falar. Nenhuma terapia, literatura ou rede de apoio me fez entender ainda por que eu tenho e alimento essa necessidade. Por que me parece vital e imprescindível que eu fale? Por que me parece importante e relevante, mesmo que ninguém mais se importe com as minhas palavras? Não sei se fazem sentido uma vez que saem de mim. Por que faço dessa questão sobrevivência, ao mesmo tempo que a considero um ato de humilhação? Isso eu ainda vou aprender. A autopreservação da imagem, o sustento do discurso, a superação de um comportamento que urge inevitável, mas que pode ser treinado. Domado?


A arte sempre salva: irrelevantes conteúdos audiovisuais me trazem alguns minutos de ignorância; a música constantemente ressoando, as vezes trilha pra correr o rio de lágrimas, e outras como recordação de que já existiu uma realidade antes dessa e que mais a frente tem mais uma a espreita. E os livros, esses alicerces de vida que tão generosamente são compartilhados conosco. Esse em particular é tão poderoso que já não posso conceber uma vida em que ele não esteja presente. Me apresenta arquétipos tão profundos e ao mesmo tempo banalizados na nossa cultura, subestimados, desconexos. Um misto de mundo interior e exterior.


Ao mesmo tempo que escrevo, exerço meu talento. É essa mulher selvagem que habita em mim. Escrevo, e vislumbro que esse é o encontro derradeiro com meu barba azul. Ele é meu. E se apresenta a mim através dos outros. Investigo que assim possa ter origem os ciclos em que me acho, constantes como o tempo e como o movimento de todos os planetas. A ânsia relacional que contra muito do que nos é mostrado insiste em persistir. Acredito que precisamos uns dos outros; fluímos de uns para os outros, e isso é vida. Desde a concepção, se a gente olhar mais perto, com atenção.


Abraçar o poder feminino que é inato para nós sem arrogância, prepotência ou senso de superioridade é um grande desafio, pois reduzir a mulher à dócil condição de humildade pode ser também um portal de ruptura com essa força que só cresce à medida que a alimentamos ou a deixamos definhar. Caminho e oscilo entre a mulher ingênua e a velha sábia. As ingênuas são aceitas e estimuladas; as sábias são extirpadas, queimadas, segregadas, abandonadas, histéricas.


São essas algumas das dimensões da psique que estou aprendendo a reconhecer dentro de mim. Quando barba azul aparece e me reduz ao descarte, à substituição, a irrelevância, percebo o quanto ele ainda é grande dentro de mim; essa força contrária a criação, que deseja me matar durante a vida, me envergonhar diante do mundo, frear e cercear meus talentos, vitalidade e energia. Ele não pode morrer. Mas ele também não pode ganhar. Seus sedutores caminhos suprem as necessidades das inexperientes, que se entregam a ele antes que percebam os perigos que as esperam; seríamos voluntárias em nosso próprio aprisionamento.


E contra a prisão, temos a companhia da nossa bonequinha, a intuição tantas vezes desprezada. Ela me contou do caminho. Mas na dança dessas cadeiras, a jovem levou o lugar. Aprendi com a CNV - Comunicação Não Violenta - que nosso sofrimento tem origem nas nossas necessidades e na nossa interpretação dos fatos. Barba azul dominava essa narrativa até 30 minutos atrás, quando comecei a escrever esse texto. Enquanto escrevo, exerço meu talento. E a velha sábia se manifesta em mim. Foi ela quem me disse para escrever. “Chora. Mas escreve. Chorando mesmo.” E de repente me encontro com a pele já seca. As lágrimas pararam de molhar.


Era pro barba azul estar aqui. Ele queria dizer que chorei todos os dias desde que parti. Que estou obcecada pelo mesmo primeiro e último pensamento antes de acordar ou dormir. Que não disfarço muito bem minha apatia. Que a ansiedade e o tédio às vezes parecem pesar duas toneladas sobre mim. Mas a velha agora se espreita e reivindica seu lugar. Eu a convido para entrar. Eu desejo que ela permaneça e me deixe segura, como a boa mãe protetora. Mas a proteção já partiu faz tempo. Estou sozinha. E é só por isso que posso crescer. Querer que a segurança permaneça, me deixaria imóvel. Ingênua. E a sabedoria não toma espaço na ignorância, é um contrassenso.


Estou fazendo tudo que posso num esforço desesperado pelo alívio que demora. E estou indo bem. Morri, mas revivi todas as vezes que foram necessárias. Vou continuar voltando, por mais que a morte doa. Espero encontrar nas páginas adiante a força sem a qual não posso existir, somente resistir. Ela me acompanha o tempo inteiro. Mora em mim silenciosamente, e me permite aquilo que eu a permito. Quero dar-lhe a permissão irrevogável de usufruto dessa terra fértil que somos.


Sobre a autora: Natália de Oliveira foi mãe ainda adolescente e hoje tem seu filho João, um adolescente de 16 anos.  É jornalista por formação e atualmente pós-graduanda em comunicação e marketing em mídias digitais. Participou como multiplicadora entre pares no projeto laços e acasos, do grupo arco-íris de cidadania lgbt. Atualmente trabalha como líder regional de diálogo de uma organização internacional de 3º setor. Natália também é colaboradora do Materna e está construindo incríveis reportagens para o nosso Núcleo!

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